Brasileiros abandonam quarentena antes da Covid-19 arrefecer no país

Apesar do crescimento acelerado de casos de Covid-19 e com cerca de mil novas mortes registradas diariamente, os brasileiros estão deixando a quarentena de lado. Em todos os estados houve aumento de ao menos 30% na circulação de pessoas entre março e julho, segundo dados apurados pelo Google.
No Amazonas, a movimentação chegou a subir 93% em quatro meses: foi de uma queda de 45% da movimentação em locais de trabalho em março para uma redução de apenas 3% na semana passada -ou seja, agora está praticamente igual ao período anterior à pandemia.
O aumento de circulação ocorre num momento em que o Amapá é o único estado com ritmo desacelerado de contágio, indicava na sexta-feira (24) o Monitor de Aceleração da Covid-19 no Brasil, do jornal Folha de S.Paulo.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o retorno de movimentação pode fazer com que os estados e o país permaneçam por mais tempo com números elevados de novos casos e de óbitos.
Além do Amazonas, Maranhão, Pará, Tocantins e Mato Grosso do Sul também estão agora com o movimento em locais de trabalho próximos aos patamares registrados antes da pandemia.
Tocantins e Mato Grosso do Sul estavam com crescimento acelerado de casos do novo coronavírus, aponta o monitor da Covid-19. Amazonas, Pará e Maranhão estão estáveis (ou seja, ainda não começou a cair o ritmo).
A análise sobre mobilidade leva em conta dados anônimos de localização divulgados pelo Google, obtidos a partir de aparelhos dos usuários, que são comparados com os meses de janeiro e fevereiro (pré-pandemia).
A reportagem analisou a variação do movimento entre março e julho em duas categorias: locais de trabalho e de lazer (shoppings, cinemas, bares e restaurantes).
Foi comparado o dia com o distanciamento social mais forte (sempre em março) em relação ao último dia 19 (nos dois casos, usando a média móvel de 7 dias). A reportagem fez uma segunda análise, comparando a média do mês de março inteiro com a média de julho, e o crescimento foi semelhante à comparação entre os dois dias.
Estados do Norte e Nordeste, onde o distanciamento social (e o número de casos) foi maior no início da pandemia, agora têm aumento mais acelerado do movimento. Isso é mais expressivo em locais que adotaram lockdown nas capitais, como Maranhão, Pará e Pernambuco.
As regiões Sul e Centro-Oeste, por sua vez, reabriram mais cedo que outras localidades, em meados de abril e maio, quando outras áreas do país ainda estavam com forte queda de movimentação.
Mato Grosso e Paraná, por exemplo, têm movimento um pouco menor agora do que o registrado no fim de maio. Os estados iniciaram um processo rápido de relaxamento da quarentena e tiveram de recuar, após aumento de casos.
Em Cuiabá, a Justiça determinou o fechamento, no fim de junho, de serviços não essenciais. Medida similar foi tomada por Ratinho Júnior (PSD), governador do Paraná.
Em São Paulo, o movimento em locais de lazer vem crescendo desde o fim de junho, após a permissão para que shoppings voltassem a funcionar. Restaurantes e bares puderam reabrir em 6 de julho.
A clientela, contudo, ainda não voltou de vez. Atualmente, o movimento na categoria é cerca de 40% menor que a média de janeiro e fevereiro. No fim de março, auge da quarentena, o fluxo de clientes era aproximadamente 70% menor que o normal.
Governadores e prefeitos têm defendido ser preciso balancear a tentativa de conter a pandemia de Covid-19 com a necessidade de retomada econômica. O desemprego no Brasil vem crescendo e chegou a 13,1% neste mês.
Já pesquisadores ouvidos pela reportagem afirmam que a quarentena no Brasil em nenhum momento foi aplicada na medida certa.
Segundo esses especialistas, um dos problemas do país, além das grandes desigualdades regionais e locais, foi a falta de uma liderança central para passar uma mensagem única de como lidar com a pandemia do novo coronavírus.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) minimizou o perigo do vírus desde março. Ele afirmou que a atividade econômica deve ser prioritária.
A saída da quarentena em momento ainda de expansão da Covid-19 é um movimento diferente do que foi feito nos países da Europa mais afetados, como Itália e Espanha.
"Tivemos a lição da Europa sobre o que dava certo e o que dava errado, mas fomos péssimos alunos", diz Raquel Stucchi, pesquisadora da Unicamp e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Nesses países europeus, a queda na mobilidade foi acentuada e se manteve até que começasse a haver diminuição consistente de novos casos e de mortes de infectados. O retorno, então, foi rápido. Agora, eles já estão próximos de estarem com atividades próximas ao pré-pandemia.
No Brasil, a doença ainda está em aceleração em boa parte das regiões. Por isso, a quarentena, que perdeu força nas últimas semanas no país, ainda é necessária para conter a pandemia.
Faz quatro meses que o Brasil atingiu o ponto mais baixo de mobilidade e ainda segue com movimentação inferior ao pré-pandemia. Nas atividades de lazer, por exemplo, está 47% abaixo do normal, na média nacional.
Na Itália e na Espanha, três meses e meio após o ponto mais baixo de mobilidade, a movimentação já estava próxima ao normal nas atividades de lazer.
Conforme a Folha de S.Paulo mostrou em junho, quando começou a se delinear o enfraquecimento do distanciamento social no Brasil, entre os dez países com mais óbitos no mundo naquele momento, somente brasileiros e mexicanos estavam saindo da quarentena ainda com aumento do número de óbitos diários.
No momento atual, a flexibilização também pode dar à população a impressão de que a estabilização dos casos em alguns estados signifique que tudo já passou e a crise está sob controle.
"Muita dessa confusão pode também estar relacionada com promessas de tratamentos milagrosos e as pessoas achando que a vacina já vai estar disponível no mês que vem", diz Stucchi.
Além de questionar as medidas de isolamento, Bolsonaro, apesar das evidências científicas que apontam o contrário, é um ferrenho defensor do uso da cloroquina contra a Covid-19.
"Para todo mundo que é da área da saúde, a abertura não é adequada enquanto tem transmissão importante. A circulação deveria ser evitada ao máximo neste momento", diz Marcos Boulos, professor de medicina da USP e integrante do comitê de contingenciamento do coronavírus de São Paulo.
Boulos afirma que com o aumento da circulação tem como consequência o prolongamento da duração da pandemia. "A doença já poderia ter acabado se tivesse tido uma restrição importante", diz.
O especialista diz que no estado de São Paulo a crise poderia ter acabado já em junho caso tivesse sido adotado um lockdown, o mais restritivo nível de distanciamento social, mas que isso não foi avaliado como uma opção viável na situação atual do país.
Christovam Barcellos, sanitarista da Fiocruz e membro do Monitora-Covid-19, afirma que o Brasil corre o risco de repetir o que acontece nos EUA, que, após um pico de casos e mortes, entrou em estabilização e já enfrenta uma nova ascensão do Sars-CoV-2.
"É esse formato que infelizmente pode acontecer no Brasil, uma subida sobre outra subida", diz Barcellos.
"Na Europa e na Ásia, houve um pico claro e uma descida sustentada. Foram tomadas medidas para uma volta com menor risco de transmissão. No Brasil essas medidas não foram tomadas."
Segundo o pesquisador da Fiocruz, só haverá segurança se houver uma cadeia de responsabilidade e coerência, partindo do governo federal até chegar às empresas e às pessoas.
Stucchi, da Unicamp, também cita a necessidade de políticas estruturadas de testagem e isolamento.
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BORGES NETO LUCENA INFORMA